A necessidade de uma cuidadosa avaliação técnica das consequências de índices de mistura acima de 10% do teor de biodiesel de transesterificação na composição do óleo diesel está entre os pontos levantados diretor técnico da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (ANFAVEA), Henry Joseph Júnior. Em entrevista exclusiva concedida à BRASILCOM, o executivo destaca também que, ao lado do etanol, o biodiesel de transesterificação tem papel importante na substituição dos combustíveis fósseis derivados do petróleo.

Como o senhor vê a adoção do programa do biodiesel de transesterificação no Brasil desde a sua implantação?

Apesar da perda de conotação social, causada pelo aumento da participação da soja e da gordura animal, em substituição aos produtos da agricultura familiar originalmente previsto, não há como negar a importância do biodiesel de transesterificação e dos biocombustíveis na matriz energética brasileira, devido à enorme contribuição que trazem para a redução das emissões dos gases que causam o efeito estufa e o aquecimento global. Ao lado do etanol, o biodiesel de transesterificação é muito importante para a substituição dos combustíveis fósseis derivados do petróleo, principalmente se considerarmos a enorme dependência que o Brasil tem com o uso de óleo diesel no transporte de carga e de passageiros.

Quais os aspectos técnicos importantes identificados pelas pesquisas da ANFAVEA e que seriam um risco quando se decide pela elevação do teor de biodiesel de transesterificação em curso?

Inicialmente, precisamos entender que a adição de biodiesel de transesterificação ao óleo diesel se destina ao abastecimento de uma frota já existente, projetada para usar óleo diesel puro. Portanto, a adição não pode alterar as propriedades físico-químicas do combustível, afetando sua utilização em veículos de diferentes marcas, modelos, idade, estado de conservação e manutenção, ou mesmo destinados às mais diferentes aplicações, prejudicando o desempenho, consumo, dirigibilidade, durabilidade ou o nível de emissões. Quando, por força de lei, se projetou o aumento da mistura para 10% e, a seguir, para 15%, a ANFAVEA foi convidada a avaliar a viabilidade técnica destes aumentos, realizando diferentes testes com diferentes veículos e procurando prever quais consequências poderiam ocorrer. Para tanto, foi concedido o prazo de um ano. Infelizmente, durante esse período, houve um atraso de seis meses para a entrega do combustível para os testes, mas o prazo para conclusões não foi prorrogado, comprometendo a qualidade dos ensaios realizados. Mesmo assim, a ANFAVEA recomendou que as especificações técnicas do biodiesel de transesterificação fossem melhoradas e que o aumento da mistura não fosse realizado enquanto os testes não fossem concluídos.

Quais os impactos desses aspectos técnicos na economia? Quais os principais problemas a serem sentidos pelos consumidores?

Como se observou, o aumento da mistura acima de 10% vem causando diversos problemas de formação de gomas e depósitos, entupimento de filtros e de bicos injetores para os veículos, máquinas agrícolas e rodoviárias, moto-geradores, bombas de abastecimento de postos de combustível e separação de fases do combustível dentro de tanques de abastecimento etc. Os consumidores têm reportado problemas de partida dos veículos, necessidade de limpeza de motores, troca antecipada de filtros e de óleo lubrificante e até de pane durante o uso. Donos de postos e distribuidoras vêm reclamando da necessidade de limpeza constante de tanques, bombas e filtros. Enfim, os relatos mostram claramente que há necessidade urgente de se reavaliar a qualidade especificada para o biodiesel de transesterificação, ou o teor máximo de mistura compatível com a qualidade do biodiesel de transesterificação hoje produzido. Talvez, um biodiesel de transesterificação produzido com maior rigor técnico e atendendo padrões especificados mais rígidos, possa até ser viável para misturas de até 15%. Mas não é o que se tem hoje.

Por que a região Norte sente mais fortemente os problemas causados pelo aumento do teor de biodiesel de transesterificação?

Não se tem uma causa já determinada para essa ocorrência, apesar de que, os relatos de problemas, têm realmente mostrado essa maior incidência. Presume-se que a maior umidade ambiente ou, eventualmente, a maior contaminação por água, visto que o biodiesel de transesterificação é higroscópico e mais suscetível à degradação quando contaminado, possam ser a razão dessa situação. Mas não se pode afirmar que sejam a causa.

O que pode acontecer se os planos de elevar esse teor até 20% se concretizarem?

Não quero crer que os responsáveis pela matriz energética brasileira sejam insensíveis ao ponto de aceitarem um aumento da mistura sem que uma completa reavaliação das especificações de qualidade e dos cuidados com a produção e distribuição seja feita. O risco de uma grande incidência de problemas e até de paralisação das frotas é enorme. Também, vamos lembrar que o aumento dos custos operacionais serão, inexoravelmente, pagos pelos consumidores, através de fretes e passagens mais caros.

Como se dá hoje a definição do avanço do teor de biodiesel de transesterificação e que medidas poderiam ser implementadas para acabar com os atuais problemas?

Infelizmente, esses aumentos têm sido determinados por lei e resoluções do Conselho Nacional de Política Energética, sem que boas e imparciais avaliações técnicas sejam previamente feitas. Acredito, sinceramente, que todo o processo de utilização de biodiesel produzido por transesterificação precise ser revisto, desde as especificações técnicas, os processos produtivos, as matérias-primas utilizadas, até os procedimentos de transporte, tancagem e comercialização. Não podemos deixar que uma de nossas melhores respostas ao problema do aquecimento global se perca por irracionalidade na sua utilização.

Que aspectos mercadológicos importantes, como a adoção dos padrões de motores EURO 5 e 6 pela indústria mundial, podem levar a um impasse na adoção de teores mais elevados do biodiesel de transesterificação?

Como mencionei anteriormente, quando a indústria automobilística se propôs a realizar os testes com a mistura, o prazo solicitado foi de no mínimo um ano. Esse longo tempo se justifica pela necessidade de testes de longa duração, que avaliam a compatibilidade com materiais e dispositivos veiculares, uma vez que uma de nossas maiores preocupações é com a durabilidade dos componentes dos motores e dos sistemas de pós-tratamento dos gases de emissão. Os novos padrões de emissão de poluentes requerem sofisticadas tecnologias, que precisam ser funcionalmente garantidas pelos fabricantes por longos períodos de utilização. Em alguns casos, essa durabilidade chega a 700.000 km de uso, ou de comprovação em uso real por até sete anos ou mais. Não existe experiência internacional para essa durabilidade com teores tão altos de biodiesel de transesterificação como os praticados no Brasil.

O país está preparado para a implantação do Proconve 8*, que estabelece novas reduções de emissões veiculares, no ano que vem?

Apesar da pandemia, que trouxe enormes problemas operacionais, a indústria automobilística vem trabalhando arduamente no desenvolvimento dos produtos, fornecedores, linhas de produção e treinamento da rede de concessionárias para o início da comercialização dos veículos leves da fase PROCONVE L-7 em 2022 e dos veículos pesados da fase PROCONVE P-8 em 2023. Eu diria que a única dúvida, quanto a essas novas fases do PROCONVE, reside na qualidade e especificações do combustível diesel, que estará disponível em campo. Temos uma grande preocupação que, com esses problemas aqui comentados, as novas tecnologias não poderão cumprir o que delas se espera em termos de melhorias na qualidade ambiental.

Como o senhor acha que deveria ser tratada a manutenção do teor de 10% biodiesel de transesterificação face às demandas pela redução do uso de combustíveis fósseis e preocupações com as mudanças climáticas?

A meu ver parece que o meio mais racional para essa questão é uma total reavaliação das exigências hoje determinadas por lei. Entendo que se deva retornar a mistura ao teor de 10%, que é um teor mais seguro frente à qualidade do biodiesel de transesterificação hoje produzido e, ao mesmo tempo, se iniciar uma completa reavaliação das especificações de qualidade e dos cuidados com a produção e distribuição, até que se adquira segurança técnica para avançar para teores maiores.

A utilização de outras rotas tecnológicas para a produção de diesel renovável (Petrobras – diesel pré-misturado e HVO) poderia resolver os problemas que vêm surgindo com o aumento da mistura de biodiesel de transesterificação?

Sem dúvida, em linha com a vocação brasileira de matriz energética limpa, se queremos avançar na utilização segura de biocombustíveis, de modo a atender os compromissos do País de redução na emissão de gases do efeito estufa, precisamos avançar na produção e utilização do HVO, que é totalmente compatível com o óleo diesel tradicional e com as tecnologias veiculares atuais e futuras. Esse é o caminho que a Europa está seguindo, inclusive combinando até 20% do HVO com misturas de biodiesel de transesterificação de 7% ou 10%. Acredito que, até que as motorizações elétricas ganhem mais escala e penetração, esse será o caminho mais viável, ambientalmente falando.

 

* Proconve (Programa de controle de emissões veiculares) – Foi instituído a partir da Resolução Conama nº 18, de 06 de maio de 1986, com os objetivos de: reduzir os níveis de emissão de poluentes por veículos automotores para atender os Padrões de Qualidade do Ar, especialmente nos centros urbanos; promover o desenvolvimento tecnológico nacional tanto na engenharia automobilística como em métodos e equipamentos para ensaios e medições da emissão de poluentes; criar programas de inspeção e manutenção para veículos automotores em uso; promover a conscientização sobre a poluição do ar por veículos automotores; promover a melhoria das características técnicas dos combustíveis líquidos disponíveis para a frota nacional de veículos automotores, visando a redução de poluentes emitidos na atmosfera; e estabelecer condições de avaliação dos resultados alcançados. O Proconve passou por várias fases que reduziram paulatinamente os limites de emissão de poluentes por veículos leves e pesados. As últimas fases previstas para cada uma das categorias são: MAR-1, para máquinas agrícolas e rodoviárias, iniciada em 1º de janeiro de 2015; L-7, para veículos leves e P-8 para veículos pesados, ambas com início em 1º de janeiro de 2022.

**Entrevista concedida à Lourdes Rodrigues, assessoria de imprensa da BRASILCOM