Em entrevista exclusiva, o diretor-geral da ANP, Décio Oddone, afirma que a abertura do setor amplia a responsabilidade da agência
As novas diretrizes políticas para o desenvolvimento do setor de gás natural exigirão especial atenção por parte da ANP. Em entrevista à Brasil Energia, o diretor-geral da agência reguladora, Décio Oddone, revela que está reforçando seu quadro de pessoal e que trabalhará para garantir que a abertura do mercado atenda aos interesses da sociedade. “A partir do momento em que a Petrobras ganhou autonomia de gestão, passando a se comportar como uma companhia privada – corretamente, eu gosto de dizer –, a responsabilidade dos formuladores de política e dos órgãos reguladores aumentou”, afirma.
Como a ANP encara as mudanças regulatórias no âmbito federal, com o Novo Mercado de Gás, e estadual, no caso do Rio de Janeiro?
Com muita naturalidade e expectativa de que resultem efetivamente na abertura do mercado de gás natural. O monopólio da Petrobras acabou formalmente em 1997, mas, na área de gás, a concentração permaneceu. Houve a Lei do Gás, em 2009, que tampouco produziu resultado, e, nos últimos anos, a discussão do Gás para Crescer, que parou no Congresso. Em meados de 2018, a ANP enviou ao Cade uma nota técnica à qual o órgão apensou um processo que derivou no TCC assinado agora [em julho, com a Petrobras], e também fizemos uma série de consultas públicas relativas ao tema. Portanto, quando houve a transição do governo, esse processo continuou e foi complementado com a resolução do CNPE [nº 16/2019, que estabeleceu o início formal da agenda do Novo Mercado de Gás]. Hoje, pela primeira vez, vemos uma confluência de ações no âmbito dos órgãos reguladores e dos formuladores de política energética que vão seguramente trazer abertura do mercado.
Em dezembro do ano passado, a Presidência da República publicou um decreto (nº 9.616) determinando que a ANP crie códigos de acesso à infraestrutura e fixe critérios de autonomia e independência do transporte e outras atividades do setor. Como está esse trabalho?
É um processo. Essas iniciativas estão, agora, enquadradas no ambiente da política energética. O governo se manifestou favoravelmente a movimentações nessa direção. Isso complementa o que a ANP e o Cade vinham fazendo.
O Novo Mercado de Gás prevê incentivos para que os estados abram mão do monopólio sobre a distribuição de gás, além da retirada da Petrobras dos segmentos de transporte e distribuição. Isso é essencial para que as mudanças planejadas surtam efeito no país?
A questão da regulação estadual foi objeto, no passado, de uma iniciativa de uniformização das regras para as distribuidoras nos estados. Agora, o governo está incentivando uma série de medidas que ajudem na abertura, como a regulamentação do autoimpotador, autoprodutor e consumidor livre. O estado do Rio já aprovou as novas regras para isso, por meio da Agernesa.
A Petrobras, com os desinvestimentos, já vem reduzindo sua participação no setor.
Até 2016, você pode interpretar que a Petrobras agia como uma empresa estatal, seguindo orientações de política do governo, fazendo investimentos com o objetivo de desenvolver determinados setores da economia ou regiões do país. A partir do momento em que a Petrobras ganhou autonomia de gestão, passando a se comportar como uma companhia privada – corretamente, eu gosto de dizer –, a responsabilidade dos formuladores de política e dos órgãos reguladores aumentou. Porque, no passado, a Petrobras era quase uma agência de desenvolvimento: ela fazia os investimentos em refino, em gás natural, tinha os gasodutos, os campos de petróleo e o governo mantinha o olho na precificação dos combustíveis. Agora, se a Petrobras decide desinvestir de gasodutos, não investir mais em refinarias e priorizar investimentos no pré-sal, é nossa responsabilidade assegurar que os investimentos que ela está deixando de fazer sejam feitos por outros.
E que isso resulte em desenvolvimento para o país.
Exato. Se a Petrobras tem uma política de preços que reflete seus interesses, essa política tem que ser vista à luz dos interesses da sociedade, com competição e transparência. Por isso, abrimos a discussão sobre o monopólio da Petrobras no refino e publicamos resoluções para garantir transparência na formação dos preços dos combustíveis líquidos e de gás natural. Na medida em que Petrobras concentra seus investimentos no pré-sal, oficiamos a companhia para que venda campos maduros nos quais não tem pretensão de investir. Se está vendendo gasodutos e refinarias, não podemos sair de um monopólio estatal para um privado. O primeiro modelo que a Petrobras propôs [venda de 60% de participação em plantas no Nordeste e no Sul] deixaria a companhia participando de três monopólios regionais, com 100% no maior deles, o Sudeste. No modelo acordado com o Cade, ficou definida a venda integral das refinarias, e terá de haver competição regional: uma empresa não pode comprar mais de uma refinaria na mesma região etc. Essa é a visão do Estado sobre o processo de desinvestimento de uma companhia. A mesma lógica vale para o gás.
Hoje há dois grupos privados (Brookfield e Engie) controlando cerca de 70% da malha de gasodutos do país. Há risco de novos monopólios regionais no setor de gás?
A Petrobras vendeu os gasodutos, mas manteve as capacidades contratadas. A recomendação do CNPE é que nós mudemos o regime tarifário, de um postal [baseado em distância] para um de entrada e saída. Quando isso acontecer, a tendência é que apareça capacidade ociosa nos gasodutos, abrindo espaço para que outros agentes atuem. Tudo isso é parte do processo de abertura do mercado.
A ANP está preparada para regular o compartilhamento de infraestrutura, conforme previsto pela resolução do CNPE?
Sim. Estamos recebendo recursos e reforço das equipes técnicas na área de gás a fim de que tenhamos braços suficientes para avançar com essa regulação.
Qual a medida desse reforço?
Em torno de 20, 30 pessoas.
Comenta-se que o governo poderia, inclusive, ceder pessoal do MME e do Ministério de Economia…
É isso, virão funcionários públicos de outros órgãos.
O Sr. falou em ociosidade de dutos. O governo diz que há dutos com capacidade ociosa e que esse acesso será garantido de imediato. Mas há uma demanda para tanto?
Haverá dois movimentos. Primeiro, o gás boliviano: outras empresas comprarão gás na Bolívia e trarão para o país, além da Petrobras. Segundo, poderia haver importação de GNL por outros agentes utilizando terminais que hoje são de uso exclusivo da Petrobras…
E que podem vir a ser compartilhados…
Isso. Em havendo compartilhamento, pode-se ter a oferta de gás importado por terceiros.
Quando que a ANP acredita ser viável colocar esse livre acesso em prática?
Acredito que é uma questão de meses para termos isso em funcionamento.
As novas regulamentações podem dar um estímulo a mais para a diversificação de petroleiras nas atividades de E&P no Brasil? Ficará mais fácil ir além do Reservoir to Wire [do poço ao poste], como faz a Eneva no Parnaíba?
Sem dúvida. A Alvopetro recentemente fez um contrato com a Bahiagás e vai construir um gasoduto e uma UPGN para fornecer gás [produzido no campo de Caburé, na Bacia do Recôncavo]. O que queremos ver é o mercado trabalhando cada vez mais nessa direção.
A ANP tem sentido maior interesse de pequenas e médias petroleiras sobre o mercado brasileiro?
Vai levar alguns anos, mas veremos uma indústria de pequeno e médio porte se consolidando no Brasil. O primeiro passo é a venda de ativos da Petrobras, porque é isso que permitirá que as companhias tenham instalações e geração de caixa no país e possam se expandir por aqui. É muito difícil começar por exploração. Por isso decidimos, por exemplo, colocar o campo de Juruá [descoberto em 1978, na Bacia de Solimões] no regime de oferta permanente, para que alguém faça o investimento que a Petrobras, durante 40 anos, não fez. O caso de Azulão [ativo terrestre na Bacia do Amazonas descoberto em 1999] é emblemático: a Eneva comprou o campo e, em meses, ofereceu o projeto no leilão de energia de Roraima. Agora, vai desenvolver o campo com quase R$ 2 bilhões em investimentos no Amazonas, gerando emprego, royalty, renda, e transportar a produção por caminhão para gerar eletricidade em uma térmica pela metade do preço da geração a diesel e com muito menos emissões. Isso mostra a importância de ter um mercado diversificado. Na mão da Petrobras, Azulão é um ativo desimportante.
O atual contexto pode trazer de volta à tona as discussões sobre exploração de gás de folhelho no Brasil?
O primeiro poço de petróleo no Brasil é o de Candeias-1, na Bahia, de 1941. Pois bem, Candeias produz há quase 80 anos em folhelho fraturado. Só não é artificialmente fraturado, mas naturalmente. Estamos discutindo o shale no CNPE. Por que hoje, no Brasil, não se explora o shale?
Há a questão ambiental…
Vamos a ela. Nos EUA há quase um milhão de poços produtores, sendo que 70% produzem utilizando as técnicas de fraturamento hidráulico. Enquanto isso, importamos GNL dos EUA, gerando emprego, royalties, atividades no Texas, West Virginia, Pensilvânia etc. Ora, se 700 mil vezes essas técnicas já foram praticadas nos EUA, será que não há tecnologia e método para mitigar os riscos ambientais? É essa discussão que precisamos ter. Não quero que façamos nada que desrespeite o meio-ambiente, mas ninguém se preocupa com as dezenas de milhões de brasileiros mantidos na pobreza? Por isso defendo que a gente estude, analise e responsavelmente explore as reservas de shale.
Outro lado dessa história são os grandes projetos de E&P offshore. Como as mudanças regulatórias no setor de gás mexem com esse segmento, tendo em vista projetos ricos em gás natural, como Libra, Carcará, Pão de Açúcar, entre outros?
Vão criar mercado e isso vai dinamizar a indústria, gerando condições para que esse gás seja utilizado e não reinjetado como hoje. Há discussões da integração do mercado de gás com o elétrico. Temos um sistema dependente de chuvas, e há o risco da intermitência dos sistemas eólicos e solar. Seria interessante avaliar a questão de ter térmicas na base para gerar equilíbrio nesse sistema. E, com isso, começa-se a gerar mercado para produção do gás offshore e oferta para a indústria, comércio, residência.
A previsão do governo de reduzir em até 40% o preço da molécula de gás é factível?
Quem vai estabelecer os preços é o mercado. Acreditamos que maior competição e transparência na formação do preço trarão uma pressão positiva.
Em meio às mudanças regulatórias, saiu o marco legal das agências reguladoras [Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019]. Como isso impacta a ANP?
Estamos trabalhando para nos adaptarmos à nova lei, que tem 90 dias para entrar em vigor. Há uma série de medidas, como a criação de uma ouvidoria, transmissão das reuniões de diretoria e elaboração de resoluções com o acompanhamento de estudos de impacto regulatório, que já implementamos. O que vejo de mais imediato, em termos de impacto, é a duração das consultas públicas, que terão mínimo de 45 dias, e nós estávamos cumprindo 30 ou menos, em alguns casos. O novo marco é positivo, pois dará maior segurança jurídica e autonomia às agências.
Fonte: Brasil Energia